Maria João George - Crónicas da Cidade de Beja
Um bonito presente me esperava há pouco no meu café habitual. Uma junção das crónicas escritas por Maria João George e publicadas ao longo dos tempos no Diário do Alentejo. Entregue pelo filho desta simpática mulher tragicamente desaparecida há pouco mais de 3 anos num estúpido desastre de automóvel que ceifou também a vida da filha Catarina.
Tomei a liberdade em copiar o prefácio deste livrinho escrito pelo seu marido Francisco George, uma bonita homenagem à sua falecida esposa!
Em Inglaterra, no comboio a caminho de Cambridge, no verão de 1964, conheci Maria João. Era época de Salazar, da repressão, da censura, de Caxias e Peniche, da guerra colonial, dos movimentos estudantis contra o regime, mas, também, da emergência de nova cultura jovem, da pílula que mudou para sempre a vida das mulheres. Era época do mundo dividido em dois blocos, mas, também, da China de Mao e, ainda, de Cuba de Fidel e da guerrilha do Che. Era tempo dos livros e dos filmes franceses e, também, do Maio de 68 de Daniel Cohn-Bendit e Charles De Gaulle. A música era dos Beatles. A conquista do espaço teria o auge em 1969, com a alunagem e com os inesquecíveis orimeiros passos de Neil Armstrong, a 20 de Julho. Eram os anos 60.
A afinidade intelectual era imensa entre nós. Visível a partir desses momentos iniciais sentados na carruagem em frente um do outro. Maria João com quinze e eu com dezasseis anos de idade. Cambridge marca a nossa ligação. Os primeiros beijos no sótão. A mistura recíproca de sentimentos e afectos que nunca nos separaram. Os passeios pelos longos relvados verdes, nas barcaças do rio ou, ainda, de bicicleta pelos parques. Eram já equacionados projectos. Futuros encontros, uma vez regressados. A intimidade a crescer.
Em 1966 entramos na Universidade. Arquitectura e Medicina. Afinal, a exemplo dos pais de cada um de nós. Estamos no funeral de Avelino Cunhal. Juntos, também, em Aveiro nos congressos da Oposição, a fugir às bastonadas do Capitão Maltês. Em 1969 não acreditamos na Primavera de Marcelo. Apoiamos a Resistência. Activos em células do PCP. Nas Associações de Estudantes, no Cine Clube ou na Livrelco e, depois, na cooperativa Devir. Também na CDE de Jorge Sampaio.
Casamos em 1970. Temos o Gonçalo dois anos depois e a Catarina a 21 de Março de 1974. Explosão da imensa alegria em Abril. A Alexandra só vem em 1980.
Maria João encantava-se com os ambientes à sua volta.
Primeiro na Cuba de Bertolina e do José Duarte Sales e depois em Beja vivemos tempos de grande alegria e tranquilidade. Apoiados pela Lucinda e pelos amigos Isabel e José Reina, Covas Lima, Jorge Campos, Lina e Pedro Borges, Conceição e Luís Miranda e, ainda, entre outros, Alice e Mestre.
Colaço e Carreira Marques ocuparam as primeiras esperanças em Beja para a Maria João, preocupada com o planeamento da cidade.
O fantástico período de África começa nas terras de Amílcar em Outubro de 1980.
Descobrimos a cooperação nesta antiga colónia. Na altura era tudo muito difícil. Dificuldades atenuadas pelo entusiasmo. Mas, também, pela beleza dos guineenses e pelos verdes de múltiplas tonalidades. Árvores de mangas povoadas por ninhos de morcegos cobriram a nossa casa. À frescura que originavam associar-se o ruído dos morcegos a disputarem os frutos.
Em Bissau, os constantes e inesperados cortes de energia eléctrica eram a preocupação todos os dias, mas, também, a falta de pão e batatas.
A música era contagiante. Os Mama Djombu cantavam a história dos guerrilheiros que, depois de instalados mos gabinetes ministeriais, mudavam de mulher. As companheiras do mato eram, então, substituídas por mulheres vistosas. O antigo combatente transforma-se em homem de Estado. O novo País Libertado enfrentava uma nova luta.
Ainda em 1980, a 14 de Novembro, a deposição de Luís Cabral por Nino Vieira. Cinco dias depois na antiga Praça do Império o sentir da alegria popular. Uma espécie de comício e de festa para assinalar, de novo, a esperança do povo.
Em breve a emergência de um novo fenómeno concentrou a atenção. Era a SIDA. Foi preciso verificar como se transmita e descobrir que era uma doença evitável.
A eleição de Jorge Sampaio para a liderança do Partido Socialista alterou as preferências partidárias.
A caminho do Senegal, em banda curta, nos postos de fronteira com a Gâmbia, íamos sabendo notícias da queda do muro.
A seguir foi Harare, no Zimbabwe. Dois anos antes do regresso a Beja.
Maria João gostava muito de Beja. Adoptou-a. Teve uma filha em Beja, cidade onde arranjou a nossa casa de referência. A casa da Família era na Rua dos Infantes.
Observava a Cidade à lupa. Preocupava-se com tudo o que dizia respeito à gestão dos espaços urbanos, mas, também, com o desenvolvimento humano. Desenhava os arranjos que considerava úteis para a cidade. Tinha sempre muitas opiniões e ideias. As portas, as janelas, as aldrabas, as fachadas, as platibandas, as cores dos barrões, tudo a interessava. Recebeu o Prémio Municipal Espiga de Ouro pela recuperação do prédio da Rua do Touro.
Tinha especial interesse pela arquitectura popular. Pela construção tradicional. Uma espécie de fascínio pelo que a taipa conseguia fazer.
Não criticava por criticar. Assumia responsabilidades pelo que dizia e fazia. Gostava de comunicar as suas posições, sobretudo em audiências vivas, a falar quer em público quer em ambientes privados. Escrevia muito.
Gostava, igualmente, de fazer crónicas. Eu invejava a facilidade com que escrevia. Era rápida e perfeita. Eu ajudava simplesmente na revisão final dos textos. Podava alguns parágrafos, a seu pedido. Limava algumas palavras.
Como acima sublinhei, Maria João encantava-se com o mundo exterior. Urbano ou rural. Descrevia e retratava em pequenos detalhes o que mais a interessava. Olhava pormenores em que outros não reparavam.
Reagia sempre com optimismo. Não conhecia o desânimo. Preferia ir em frente, empurrar e puxar por outros. Cultivava a simpatia. Ouvia todos. Sorria para todos.
Na EDIA dedicou-se à reinstalação da Aldeia da Luz. Estudou e percebeu o Guadiana para para poder coordenar o Projecto que a imensa albufeira passaria a exigir. Conseguiu, com êxito, assegurar a recomposição do quadro físico com manutenção das relações sociais. Continuou a projectar ideias para cada ponto do regolfo.
A 21 de Março de 2006 um despiste de automóvel no ponto que afunila a estrada de Beja para Lisboa, antes de chegar ao Sado, tirou as vidas a Maria João e a Catarina que nesse dia completava 32 anos de idade.
A love like ours never dies foi a inscrição, inspirada numa famosa canção dos Beatles, que pedi ao canteiro para gravar no mármore branco da campa do cemitério inglês de Lisboa onde estão Maria João e Catarina.
As muitas manifestações de solidariedade que eu e os meus filhos recebemos foram decisivas para continuarmos a construir.
Francisco George
Maio 2009
Tomei a liberdade em copiar o prefácio deste livrinho escrito pelo seu marido Francisco George, uma bonita homenagem à sua falecida esposa!
Em Inglaterra, no comboio a caminho de Cambridge, no verão de 1964, conheci Maria João. Era época de Salazar, da repressão, da censura, de Caxias e Peniche, da guerra colonial, dos movimentos estudantis contra o regime, mas, também, da emergência de nova cultura jovem, da pílula que mudou para sempre a vida das mulheres. Era época do mundo dividido em dois blocos, mas, também, da China de Mao e, ainda, de Cuba de Fidel e da guerrilha do Che. Era tempo dos livros e dos filmes franceses e, também, do Maio de 68 de Daniel Cohn-Bendit e Charles De Gaulle. A música era dos Beatles. A conquista do espaço teria o auge em 1969, com a alunagem e com os inesquecíveis orimeiros passos de Neil Armstrong, a 20 de Julho. Eram os anos 60.
A afinidade intelectual era imensa entre nós. Visível a partir desses momentos iniciais sentados na carruagem em frente um do outro. Maria João com quinze e eu com dezasseis anos de idade. Cambridge marca a nossa ligação. Os primeiros beijos no sótão. A mistura recíproca de sentimentos e afectos que nunca nos separaram. Os passeios pelos longos relvados verdes, nas barcaças do rio ou, ainda, de bicicleta pelos parques. Eram já equacionados projectos. Futuros encontros, uma vez regressados. A intimidade a crescer.
Em 1966 entramos na Universidade. Arquitectura e Medicina. Afinal, a exemplo dos pais de cada um de nós. Estamos no funeral de Avelino Cunhal. Juntos, também, em Aveiro nos congressos da Oposição, a fugir às bastonadas do Capitão Maltês. Em 1969 não acreditamos na Primavera de Marcelo. Apoiamos a Resistência. Activos em células do PCP. Nas Associações de Estudantes, no Cine Clube ou na Livrelco e, depois, na cooperativa Devir. Também na CDE de Jorge Sampaio.
Casamos em 1970. Temos o Gonçalo dois anos depois e a Catarina a 21 de Março de 1974. Explosão da imensa alegria em Abril. A Alexandra só vem em 1980.
Maria João encantava-se com os ambientes à sua volta.
Primeiro na Cuba de Bertolina e do José Duarte Sales e depois em Beja vivemos tempos de grande alegria e tranquilidade. Apoiados pela Lucinda e pelos amigos Isabel e José Reina, Covas Lima, Jorge Campos, Lina e Pedro Borges, Conceição e Luís Miranda e, ainda, entre outros, Alice e Mestre.
Colaço e Carreira Marques ocuparam as primeiras esperanças em Beja para a Maria João, preocupada com o planeamento da cidade.
O fantástico período de África começa nas terras de Amílcar em Outubro de 1980.
Descobrimos a cooperação nesta antiga colónia. Na altura era tudo muito difícil. Dificuldades atenuadas pelo entusiasmo. Mas, também, pela beleza dos guineenses e pelos verdes de múltiplas tonalidades. Árvores de mangas povoadas por ninhos de morcegos cobriram a nossa casa. À frescura que originavam associar-se o ruído dos morcegos a disputarem os frutos.
Em Bissau, os constantes e inesperados cortes de energia eléctrica eram a preocupação todos os dias, mas, também, a falta de pão e batatas.
A música era contagiante. Os Mama Djombu cantavam a história dos guerrilheiros que, depois de instalados mos gabinetes ministeriais, mudavam de mulher. As companheiras do mato eram, então, substituídas por mulheres vistosas. O antigo combatente transforma-se em homem de Estado. O novo País Libertado enfrentava uma nova luta.
Ainda em 1980, a 14 de Novembro, a deposição de Luís Cabral por Nino Vieira. Cinco dias depois na antiga Praça do Império o sentir da alegria popular. Uma espécie de comício e de festa para assinalar, de novo, a esperança do povo.
Em breve a emergência de um novo fenómeno concentrou a atenção. Era a SIDA. Foi preciso verificar como se transmita e descobrir que era uma doença evitável.
A eleição de Jorge Sampaio para a liderança do Partido Socialista alterou as preferências partidárias.
A caminho do Senegal, em banda curta, nos postos de fronteira com a Gâmbia, íamos sabendo notícias da queda do muro.
A seguir foi Harare, no Zimbabwe. Dois anos antes do regresso a Beja.
Maria João gostava muito de Beja. Adoptou-a. Teve uma filha em Beja, cidade onde arranjou a nossa casa de referência. A casa da Família era na Rua dos Infantes.
Observava a Cidade à lupa. Preocupava-se com tudo o que dizia respeito à gestão dos espaços urbanos, mas, também, com o desenvolvimento humano. Desenhava os arranjos que considerava úteis para a cidade. Tinha sempre muitas opiniões e ideias. As portas, as janelas, as aldrabas, as fachadas, as platibandas, as cores dos barrões, tudo a interessava. Recebeu o Prémio Municipal Espiga de Ouro pela recuperação do prédio da Rua do Touro.
Tinha especial interesse pela arquitectura popular. Pela construção tradicional. Uma espécie de fascínio pelo que a taipa conseguia fazer.
Não criticava por criticar. Assumia responsabilidades pelo que dizia e fazia. Gostava de comunicar as suas posições, sobretudo em audiências vivas, a falar quer em público quer em ambientes privados. Escrevia muito.
Gostava, igualmente, de fazer crónicas. Eu invejava a facilidade com que escrevia. Era rápida e perfeita. Eu ajudava simplesmente na revisão final dos textos. Podava alguns parágrafos, a seu pedido. Limava algumas palavras.
Como acima sublinhei, Maria João encantava-se com o mundo exterior. Urbano ou rural. Descrevia e retratava em pequenos detalhes o que mais a interessava. Olhava pormenores em que outros não reparavam.
Reagia sempre com optimismo. Não conhecia o desânimo. Preferia ir em frente, empurrar e puxar por outros. Cultivava a simpatia. Ouvia todos. Sorria para todos.
Na EDIA dedicou-se à reinstalação da Aldeia da Luz. Estudou e percebeu o Guadiana para para poder coordenar o Projecto que a imensa albufeira passaria a exigir. Conseguiu, com êxito, assegurar a recomposição do quadro físico com manutenção das relações sociais. Continuou a projectar ideias para cada ponto do regolfo.
A 21 de Março de 2006 um despiste de automóvel no ponto que afunila a estrada de Beja para Lisboa, antes de chegar ao Sado, tirou as vidas a Maria João e a Catarina que nesse dia completava 32 anos de idade.
A love like ours never dies foi a inscrição, inspirada numa famosa canção dos Beatles, que pedi ao canteiro para gravar no mármore branco da campa do cemitério inglês de Lisboa onde estão Maria João e Catarina.
As muitas manifestações de solidariedade que eu e os meus filhos recebemos foram decisivas para continuarmos a construir.
Francisco George
Maio 2009
6 Comments:
Um LINDO momento no teu blogue! agora não vou comentar mais.. mas.. obrigado ZIG!
H:
:)
Excelente homenagem a Alguém trágica e precocemente desaparecida do nosso convívio que, não sendo de Beja, soube como ninguém entender esta cidade que adoptou como sua.
Com um pedido de desculpas ao autor do blog pelo abuso, aqui deixamos uma questão pertinente a quem de direito: para quando uma pública homenagem da cidade à Arq.ª Maria João George que perpetue para os vindouros o seu nome na toponimia da cidade por exemplo. Não se sugere obviamente que se altere o nome da Rua dos Infantes onde residiu mas há tantas ruas e praças por cá ...
Fica a sugestão!
Anónimo:
Já se tem falado bastante nesse assunto, ela não está esquecida. Mais tarde ou mais cedo as forças vivas de Beja irão pensar em fazer algo pela memória dela.
Concordo com todos os comentários que aqui foram feitos.
Que Deus as tenha em paz e ajude a familia a superar a dor.
El Juanito
El Juanito:
:)
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